Entre Almas, Ramos e Promessas: Tradições Folclóricas da Páscoa no Brasil
- Cain Mireen
- 18 de abr.
- 5 min de leitura
Entre Almas, Ramos e Promessas: Tradições Folclóricas da Páscoa no Brasil
A Páscoa, em terras brasileiras, não é apenas uma data cristã marcada por missas e ovos de chocolate. Ela é um espelho das profundezas culturais que formam o Brasil: um país onde a fé católica se entrelaça com as práticas indígenas, com os segredos trazidos da África, com as ladainhas do interior e os gestos silenciosos das avós que benzem crianças com ramos de alecrim.
As tradições da Semana Santa e da Páscoa, no Brasil profundo — o Brasil das roças, das ladeiras de pedra, dos terreiros e das capelinhas — são feitas de ritos de sangue e silêncio, de comidas de promessa e jejum, de encenações sagradas, cantos e superstições que atravessam séculos e misturam o visível com o invisível.
Domingo de Ramos: ramos que curam, protegem e revelam
A Semana Santa começa com o Domingo de Ramos, e para o povo brasileiro, o ramo abençoado tem poder.
Em cidades históricas de Minas Gerais, interior da Bahia, Goiás, Pernambuco ou São Paulo, o povo leva seus ramos à missa — geralmente feitos de palmeira, mas também de alecrim, arruda, manjericão ou guiné, dependendo da tradição local. Após a bênção, esses ramos são levados para casa e colocados atrás da porta ou pendurados nas cozinhas, como proteção contra mal-olhado, tempestades, doenças e feitiçaria.
Em algumas comunidades rurais do Nordeste, acredita-se que o ramo seco de um Domingo de Ramos pode ser queimado em tempos de perigo, como forma de expulsar males ou acalmar chuvas fortes.
Já no interior de estados como o Ceará e o Maranhão, há a tradição de bater o ramo suavemente nas costas das pessoas da casa, enquanto se recita:"Este ramo é de paz / quem não me der um tostão / vai ver o que Satanás faz!" Mistura de brincadeira e simpatia, de bênção e ameaça — como boa parte do folclore brasileiro.
Segunda, Terça e Quarta-feira Santa: silêncio e vigília
Nos dias que seguem o Domingo de Ramos, a atmosfera nas cidades do interior e nos vilarejos muda. Os sinos são silenciados, as rádios tocam músicas sacras, os comércios fecham mais cedo, e a terra parece reter o fôlego.
As famílias fazem limpezas espirituais em casa, lavam o chão com ervas (principalmente levante, arruda e alfazema), evitam barulho, não ouvem música alta, e em muitos lugares não se varre a casa à noite, por medo de espantar os santos que visitam discretamente.
É tempo de oração e vigília. De preparar o corpo e o espírito para a paixão. Algumas famílias mantêm o costume de fazer novenas domésticas, rezando em voz baixa, à luz de velas — especialmente no Norte e Nordeste.
Quinta-feira Santa: pés lavados e encantamentos
A Quinta-feira Santa marca o início do Tríduo Pascal, e com ele vêm tradições marcantes. Nas igrejas católicas, ocorre o rito do lava-pés, onde o padre (ou até o patriarca da família) lava os pés de outras pessoas, em gesto de humildade.
Mas no folclore brasileiro, essa noite é mágica. Diz-se que:
As plantas colhidas nesta noite têm poder triplicado, especialmente se forem usadas em defumações ou banhos;
É a noite ideal para fazer benzimentos fortes, principalmente contra inveja e feitiçaria;
Algumas rezadeiras preparam água benta caseira, colocando ramos e cruzes de palha dentro, para usar ao longo do ano;
Em regiões da Amazônia e do sertão nordestino, há quem creia que a água das nascentes, colhida à meia-noite da quinta-feira, se torna milagrosa, podendo curar doenças e abrir caminhos.
Sexta-feira Santa: silêncio, sacrifício e proibição
A Sexta-feira Santa é, no imaginário popular, o dia mais sagrado e perigoso do ano.
No Brasil rural e tradicional, ela é envolta em proibições rígidas:
Não se pode trabalhar a terra, pois ela está de luto e “sangra”;
Não se deve tomar banho de rio ou mar, pois dizem que “as águas estão em luto” e podem puxar para o fundo;
Não se mata animal, nem se pesca, em respeito ao sacrifício de Cristo;
Muitas famílias não cozinham com sal, não usam temperos, jejuam ou fazem refeições simbólicas — o famoso peixe na brasa, o arroz sem gordura, a sopa de ervas.
Algumas comunidades ainda mantêm a tradição da Procissão do Senhor Morto, com as imagens cobertas por panos roxos e velas sendo acesas nas janelas ao entardecer.
E há também o costume de guardar silêncio das 12h às 15h, como se o próprio tempo parasse — pois, segundo a crença, nesse horário Jesus morreu, e o mundo se cala.

Sábado de Aleluia: expulsar o mal e renascer
O Sábado de Aleluia é um dia liminar — nem completamente sagrado, nem profano, uma transição entre a morte e a ressurreição.
No Brasil, é famoso o costume de “malhar o Judas”: um boneco de pano, representando o traidor, é pendurado em postes ou árvores e depois espancado, incendiado ou explodido com bombas caseiras. Essa prática é comum em diversas regiões e serve como ritual de expulsão simbólica do mal, muito semelhante a práticas medievais ou pagãs.
Mas há também tradições menos conhecidas:
No sertão nordestino e em vilas mineiras, algumas famílias acendem fogueiras discretas para espantar os maus espíritos que rondam antes da ressurreição;
Algumas parteiras e benzedeiras fazem orações de renascimento espiritual, especialmente para pessoas deprimidas, doentes ou "trancadas por demandas".

Domingo de Páscoa: bênçãos, comida de alma e renovação
O Domingo de Páscoa é tempo de festa, mas não apenas com ovos de chocolate.
Nas tradições populares, é dia de:
Benzer os alimentos antes de comer — especialmente ovos, pães e peixes;
Fazer orações de gratidão e renascimento, invocando os santos e os ancestrais;
Trocar ovos naturais pintados à mão, como símbolo de amizade, fertilidade e prosperidade;
Comer comidas feitas com intenção mágica, como o pão da fartura (feito com orações) ou o “doce de bênção”, preparado com canela, açúcar mascavo e mel.
Em algumas famílias do interior do Sul e Sudeste, ainda se canta a “Ladainha da Ressurreição” ao redor da mesa, e as crianças recebem “presentes de anjo” — moedas, figas ou doces envoltos em pano branco.
A Páscoa como tempo de cruz e renascimento
A Páscoa no Brasil é um tempo de limpeza, morte simbólica e renascimento. Mas ao contrário de uma morte triste, é uma morte ritualística, um mergulho no mistério para voltar diferente. Cada procissão, cada prato, cada silêncio e cada supertição carrega dentro de si a memória de um povo que viveu (e ainda vive) com a alma aberta ao invisível.
Nos ramos, nos bonecos de Judas, nas rezas sussurradas à meia-noite, nos olhos da avó que vigia o forno com fé: ali pulsa o Brasil místico, o Brasil do encantamento, que celebra a Páscoa não só com chocolate, mas com alma, com fogo e com flor.
Fontes consultadas:
Cascudo, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro
Prandi, Reginaldo. Mitologia dos Orixás
Bastide, Roger. As Religiões do Brasil
Observatório da Cultura Popular – USP
Coletânea de registros orais de comunidades do Vale do Jequitinhonha (MG) e Sertão da Bahia (projetos de extensão cultural UFMG, UFBA)
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